Isto não é uma carta de amor.

Anna Venne
5 min readJun 14, 2023

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Escrever é um exercício cortante. Parte-se a carne, espalham-se as vísceras, para encontrar beleza nas cores roxas, vermelhas e azuis, derramadas vulneráveis por cima da folha. Embrenhando-se nas matas da linguagem numa caçada ao silêncio, esfregando a pele dos sentidos no mundo até sangrar a superfície da realidade.

Aqui, te dou minhas palavras, a minha falta, o meu desejo. Aquilo que há de mais precioso em meus contornos. Embora tenha lido que o poeta é aquele que descobre, aquele que vê primeiro, te chamo uma vez mais (e sempre) a ser meu co-autor.

A fusão cósmica de dois amantes, de dois amigos. Não acho que exista nada mais extraordinário no mundo do que o encontro de duas pessoas. Certamente, nenhum criador imaginou que o barro poderia ser tão luminoso. Ao fitar este infinito, de pé sobre o abismo do invisível seguinte, o que desperta é a curiosidade, o afeto e a aventura. Talvez seja a sede da juventude ou a consciência da travessia pelo que há de celestial na Terra.

Te dou meu olhar de mão e boca beijadas. Espectadora da sua existência, sei que ninguém te olha como te olho. Reivindicando velhas palavras, digo novamente: icebergs esculpidos por cada maré e ainda tendo suas ondulações sutilmente polidas por cada imperceptível e desatento momento vivido. A junção alquímica, mágica e irreproduzível, que existe no número dois. Arrebatada pelo sentido deste contínuo mistério que se apresenta a mim, presenciando teu olhar parindo mundos, no querer de que a companhia de sua existência mude um pouco a mim. Suas subjetividades: não as perca! Elas fazem de tudo mais interessante e as diferenças capazes de darem corpo ao encontro. Minhas eternas boas-vindas ao seu discurso sobre o mundo.

Igualmente, as reminiscências dos quereres passados, que se misturam, se modificam, nos moldam em suas transgressões e rupturas, nos fazem novos e mais atentos ao palatável presente. O que já foi é igualmente valioso ao futuro, nos direciona. Tudo o que somos é processo, portanto, também grandioso. Isto em nada se confunde com delirantes otimismos, apenas pego emprestada a visão literária que sabiamente enxerga tudo com calma do alto. O poder de eventualmente deslocar os pés do chão para tornar-se espectador da própria vida: há beleza nas retas e curvas.

Sem romantismos enlatados de supermercado, eu não quero o pronto, o padronizado e incutido goela à baixo. Com você, apenas o novo. Criadores de um multiverso nunca antes visto, pela união irreproduzível entre nossas duas perspectivas. Não quero as balelas de alma gêmea: atrativo mesmo é o desejo atravessadíssimo pela antítese mágica do real. Proíbe-se a compra da tradição, vivem-se as ideias, fomentando a união de nossos olhares atentos e sensíveis em um pacto de amor, escuta, cuidado, confiança e liberdade. Me alimento de Galeano e Mãe para manter a fé de que não há nada mais belo do que aquilo que é a costura entre o coração e os desenganos mundanos, com duas linhas (como o número divino) que andam paralelas e insubordináveis sobre as incertezas do infinito. E que empolgação mora em mim nessa jornada.

A verdade é que não temos mais nada para conhecer além de todo o resto que transcorre diante de nossos olhos e se esconde por entre as rachaduras invisíveis de nossos corpos. Certa vez, frases bonitas ecoaram ao universo, coisas como “Faça-se a Luz”, e eu tenho certeza que é por aqui que ela entra.

Sei também que se arrancasse um pedaço de suas mãos e o levasse a minha boca, ele seria doce (sabe que me apaixonei por tuas mãos como por você).

A partilha deste devir, que roça minha língua, toca meus pêlos e flameja minha pele. O chamego do constante vir a ser e daquilo que ainda não veio (e não vemos): da potência ao ato. Conciliando desejos, voluntariamente unindo planos e olhares. Tateando conforto na coincidência dos contrários, vislumbrando o futuro se achegar ao toque, os sonhos tomarem forma, como aquela certa cobra que uma vez sonhei que me acompanhava. Dentro de tudo aquilo que já tomou na minha vida o lugar de corpo e solidez, você se anuncia como a mais nova certeza. E eu te quero tanto.

Lembro-me agora de quando Vita escreveu raivosa a Virgínia sobre haver pouca coragem em esconder-se por trás de palavras bonitas, então, não há nada mais que eu possa fazer além de despir-me novamente diante de ti.

Certa vez, meu amor, sonhando acordada, inscrevi todo o teu corpo de hachuras e nanquim, e que difícil é extrair a beleza dos vazios e escolher os movimentos certos como você faz. E mesmo assim, com minha história ainda em constante construção e faltante de certos preenchimentos, você me coloca sob olhares tão generosos e aviva a minha vontade em existir maior. Tudo sem pressa, sem exigir que os processos ocorram para a satisfação de egóicas expectativas. E como é bom esse contraste da calma com a urgência em desejar tudo para ontem contigo. Com viagens, aventuras, desafios, acampamentos, maravilhas culinárias, mudanças, forrós, galinheiros e uma cama de casal só nossa.

Envio meu amor aos seus olhos cerrados, aos seus esculpidos lábios superiores, às curvas do teu quadril, aos pêlos ruivos de sua barba, às suas mãos delicadas e à coragem de seus pés. Se pudesse, beijaria também a tua voz.

Mas não esqueçamos que a beleza fugaz desses dizeres logo se dissipa, por isso, aproveito esse pequeno agora. Toco ao máximo a superfície das palavras que encontro, na esperança de que você, atento aos espaçamentos e entrelinhas, possa capturar ao menos uma parte do feixe de luz que efemeramente parte de mim para o aqui. E que nos encontremos nisso. Os momentos se findam e às vezes me demoro na esperança de eternizá-los em espírito, por saber serem preciosos demais.

Me concentro para fazer deste um exercício de escrita e de conhecimento (nós por nós — ad infinitum), e não simplesmente dizer que você é o meu caminho e o meu viver. Alquimias se fazem, parceria também.

Então, não. Esta não é uma carta de amor.

Meu bem, meu companheiro, meu cúmplice, minha alegria no mundo,

Tu, que fizeste do meu sexo catedral,

Este é um ensaio ao futuro.

Com todo o meu afeto e um enorme desejo,

sua Anna.

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Anna Venne

marxista-existencialista. não objetiva a mulher que busca eviscerar-se da carne dos sentimentos.