existencialismo demais enche o saco

Anna Venne
4 min readOct 5, 2020

tocou por dois segundos, aquela batida que de repente se perdeu. sequer lembro mais de qualquer nota. foi-se embora como quem sabe que deixa a melancólica nostalgia de não se saber ficar. do que se tratava? que ironia. aqui elas são bem-vindas.

pulou, saltou das águas do inconsciente e mergulhou de novo, uma grande de uma caçoada. como quem ri escarniosamente da incansável tentativa de enganar a si. controle? é de se fazer mesmo gargalhar as bobagens que nos contamos. distorcidas falácias, dramáticas como tudo que dá corpo ao existir. na randômica fortuna dos enredos, queremos nós mesmos viver as tragédias gregas. me permitiria rir com absoluta e afável ironia, caso se tratasse de outro contexto.

ora, uma vida inteira de esquecimento, quem dirá tudo que se acomoda e repousa embaixo do carpete. em qual momento se pula, festeja, mergulha e sepulta só deus sabe quando. que presunção, achar a vontade conduíte. contento-me em fazer dela apenas o que é possível, de forma que só se pode querer celebrar esse casamento: a beleza das escolhas que não estão sob alcance, mas são feitas de todo jeito. e aquelas que, ainda assim, estão ao toque dos dedos.

determinante e determinismo, talvez não existam nenhum dos dois em seu absoluto, em suas medidas. mas, por favor, não se descuide das interpretações, preciso de você aqui comigo. dito isto, a autonomia é fundamental. indispensável. é a gota do que temos.

lembro de kandinsky, que gostava dos espaços em seus quadros, ressoando o esquecimento. “o branco, portanto, tem esta harmonia de silêncio, que funciona negativamente sobre nós, como muitas pausas na música que quebram temporariamente a melodia. não se trata de um silêncio morto, mas de um silêncio carregado de possibilidades”.

veja bem, não há absolutamente nenhum buraco, mesmo que a memória queira pregar tal peça. apenas espaços em branco, como mostra o pintor. silêncios audíveis exigem anúncios, como a música fujona em saltos gracejantes.

convenhamos, sabemos que a memória é, na verdade, a desmemória. está aí um grande ponto de partida, admita: esquecemos muito mais do que lembramos. a beleza disso eu pude aprender na mesma medida que os anos começaram a verdadeiramente pesar nas minhas costas. no auge das minhas duas décadas, apequenadas em número e gigantescas como qualquer vida pode e, com certeza, é. há de ser belo tudo que se pisa, e caminhando tudo se esvai, e se principia.

bela, a crônica que se estende. feito fio se espalha em nós, novelos, barbantes. de repente, camas de gatos espalhadas e entrelaçadas por todos os salões feito brincadeira de criança. ah, “de repente” coisíssima nenhuma. não somos indivíduos, já é sabido, somos precisamente aqueles que se dividem. e muito. olhe bem e verá que as suturas se abraçam e se rompem e, no que se rompem, se principiam e, no que se principiam, se estendem.

aquela história do mercúrio que se espalha prateado por entre o rejunte dos azulejos quando o termômetro se espatifa das mãos da criança segurando o instrumento de frente para a cabeceira da cama dos pais. sem pausas, já ouvi falar. é tudo muito rápido, não pense conseguir segurar ou juntar os caquinhos. a vida corre a galopes.

que alívio: o esquecimento. mesmo eu, entusiasta das pequenas memórias, fico feliz diante da incapacidade de lembrar e as vezes até torço para que sua partida seja o quanto antes. bem-vindo, leve tudo de mim! ou quase… falei dos dramas necessários, não se lembra? todo esse carrocel para contrariar, em certa medida, o brado da liberdade. tu-do me pertence.

esse olhos — esses bem aqui — abrem janelas. maximizam e minimizam perspectivas. o diafragma, tal qual a mecânica das câmeras fotográficas, controla a entrada de luz e, assim, também a delimitação das obscuridades. seleciona-se a captura e o lapso. engano seu achar que sentados no banco da praça vemos a mesma coisa. digo agora para quem quiser ouvir, debochada como mensageira do óbvio, já que não me resta outra função: a vida é o que sentimos dela. os afetos são sensor e lente.

ainda bem, o esquecimento se consolida. aos poucos, e com duras penas sancionadas. não me equivocarei a dizer que ao passado pertence, sabendo que justamente tudo se extende e, vez ou outra, salta das águas. indecifráveis icebergs, o curso das águas esculpindo cada pequena ondulação da superfície do gelo e tornando o polimento irreproduzível, diferenciando-nos. esclareço, a narrativa não é mitigável.

não admite-se pretensos narradores daquilo que só a visão, una, enxerga. o pretérito não é fracionário, a existência não é apenas aquilo que a memória é capaz de resgatar e menos ainda o que o recente distorcidamente apenas parece revelar.

resisto há muito mais tempo que isso, existo -dentro- em horas imensuráveis. voyeurismo disfarçado de superioridade. ridícula interpretação de mundo.

eu. propriedade intelectual, assentamento afetivo, bem indisponível.

o apelo do nada que é, antes do nascimento de tudo que brota, o mundo primordial na era do gelo. maleável, fecundo, guarda promessas. fez crescer florestas, rompeu cercaduras, fez chover, fez queimar. este tremendo agora, único, no que se apresenta apenas àquela fotografia, àquela pintura.

percebe a unidade? não há estancamento. uma tela que se pinta abstrata, o fundo branco e as cores espalhadas. nenhum espaço é inócuo, ao mesmo tempo que nenhum recorte é definidor.

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Anna Venne

marxista-existencialista. não objetiva a mulher que busca eviscerar-se da carne dos sentimentos.